sábado, 27 de novembro de 2010

A morte renegada

A morte renegada


Publicado em 21.11.2010
Jornal do Commercio

Roberto Barreto Marques

Não faz tanto tempo assim a morte não se encontrava tão distante da vida, convivia com ela toda semana, todos os dias e em diversas ocasiões.

No Brasil, até meados do século XIX, os enterros eram realizados dentro das igrejas ou arredores, fazendo com que todo devoto permanecesse em contato com os mortos. Também era desejo corriqueiro, certificado em testamento, a separação de grandes somas em dinheiro para o ritual fúnebre e compra de um bom local, de preferência privilegiado, na igreja. Mesmo após a transferência dos mortos para os cemitérios públicos e distantes dos centros urbanos, a vida ainda buscava a presença da morte.

Apesar de forçada a se concentrar em um ambiente fechado e distante do cotidiano citadino, a morte ainda recebia visitas freqüentes de sua irmã, a vida, recebendo flores, velas, preces e uma pomposa edificação tumular. Nas casas, mesmo após o início do século XX, algumas famílias procuraram preservar certas práticas fúnebres (escassamente ainda verificadas em determinadas regiões do Brasil, a exemplo da cidade de Bela Vista de Goiás estudada por Déborah Borges), como o costume de tecer sua própria mortalha, preparar alguns detalhes de seu funeral, fotografar os mortos em seu ataúde e construir ou mandar fazer seu próprio caixão.
Na atualidade, segundo Norbert Elias, a morte foi levada da casa para o hospital e tratada como algo incomum e asqueroso. O "vá em paz", "descanse", "seja bem recebido nos braços do Pai" foi substituído por um "resista", "seja forte", "não diga isso... você vai ficar curado". De comum e aceitável passou-se a incomum e inaceitável. Baseado em Castells, Héctor Ricardo Leis afirma que um dos motivos deste distanciamento da vida em relação a morte está no avanço da técnica, da tecnologia, passando a idéia de que o corpo poderia durar para sempre, afinal pode-se colocar uma prótese no lugar de uma perna amputada, transplantar um fígado, um rim, enfim, prolongar a vida de diversas formas.

Portanto, na intenção de não nos lembrarmos de nossa finitude, procuramos, ao máximo, esperar o elixir da vida eterna e afastar tudo o que nos faz refletir sobre a morte. Restringimos, quando muito, a dias específicos no ano a ida às necrópoles e observamos a morte nos jornais como algo distante e legado a outros, sempre a morte do outro, a morte que não é minha, a morte que não me faz ponderar sobre meu próprio fim (mas que fim?). A vida, antes íntima da morte, passa a renegá-la.

Um exemplo específico desta rejeição pode ser percebido no discurso de ambulantes, vendedores de velas, de flores e trabalhadores autônomos do Cemitério de Santo Amaro, no Recife, quando estes são categóricos ao afirmar que o movimento vem decaindo a cada dia de finados. È o chamado tabu da morte, considerado por Antonio Motta um dos últimos tabus a ser derribado, implícito na fala destes trabalhadores.

» Roberto Barreto Marques é evangélico e estudante de ciências sociais da UFRPE

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