domingo, 14 de março de 2010

A força da simplicidade

A força da simplicidade
Publicado em 14.03.2010
Editorial do Jornal do Commercio - Recife


Em terra de cego, reza o ditado, quem tem olho é rei. Em um país marcado por escândalos de corrupção, onde a falta de escrúpulos entope a fonte da qual deveriam vir bons exemplos, atos corriqueiros de cidadãos comuns acabam virando notícia. Como a história do funcionário do Aeroporto Internacional do Recife, Ivaldo Constantino, que encontrou uma frasqueira esquecida, contendo joias no valor de R$ 200 mil.
Ao achar a valise da marca Louis Vuitton, abandonada próxima aos telefones públicos, Ivaldo agiu de acordo com os procedimentos de praxe, acionando a segurança do aeroporto e encaminhando o objeto ao setor de achados e perdidos. Agiu, também, de acordo com a consciência. Nem cogitou “dar uma espiadinha” para ver o que tinha lá dentro. A ética virtuosa é assim, automática. Foi um ato banal de um cidadão de bem, que não seria de espantar ninguém em circunstâncias normais. Se não fosse pela vontade da proprietária de dar publicidade ao fato, talvez nem a própria mãe de Ivaldo viesse saber do “heroísmo” do filho.

A aposentada Luíza Amorim se declarou “maravilhada” ao deparar com Ivaldo, o segurança e a bolsa com suas joias, ainda no balcão de achados e perdidos do aeroporto, pouco tempo depois que se deu conta de que não estava mais com a valise. “Fiquei muito feliz por existir uma pessoa como ele. Vemos na televisão casos assim, mas nunca pensamos que isso pode acontecer conosco”, confessou Luíza, provavelmente se sentindo, àquela altura, recuperada do susto, como alguém de sorte.

Gestos como o de Ivaldo acontecem com mais frequência do que se imagina, mas por natureza, seus protagonistas preferem a discrição. Lembramos apenas dois desses eventos que ganharam as manchetes: em 2007, um motobói de Brasília devolveu uma pasta com US$ 6 mil, encontrada em um shopping, e no ano passado, duas sacolas cheias de dinheiro, pertencentes ao dono de um supermercado, foram encontradas por uma catadora de lixo em São Paulo, e também devolvidas.

O contraste do cotidiano desse cidadão comum, decente, com o cotidiano da passageira agradecida por seu gesto, justificaria, para alguns, uma atitude diferente daquela tomada por Ivaldo. Afinal de contas, para quem pedala todos os dias para chegar ao trabalho, mora numa casa sem reboco e ganha um salário várias vezes menor do que o valor das joias devolvidas, seria possível cair em tentação, e considerar a virada de vida que a posse do alheio proporcionaria – certamente compraria a motocicleta dos seus sonhos, e reformaria a casa, se não se mudasse para outro lugar. Abrir a valise seria como abrir um novo destino. Por que não? O comentário geral dos colegas, que o elegeram como alvo de chacotas depois da divulgação do episódio, é sintomático de um comportamento social manchado por maus exemplos – a maioria deles, vindos de cima. Ouvida pela reportagem do JC, a balconista Andreza Ramos confirmou essa impressão. “Hoje em dia as pessoas só querem se dar bem. Dificilmente vemos um ato honesto assim. Deveriam promovê-lo”, afirmou Andreza.

O que fez Ivaldo, no entanto, foi demonstrar, pela via de um gesto simples e desinteressado, que não poderia agir de outra forma. “Fazemos isso todo dia”, disse ele, sem imaginar o quanto é importante a repetição da honestidade, numa terra em que a desonestidade é banalizada como se não fosse um desvio. Como se a quebra das regras de convivência, o desrespeito das leis e das normas, não fosse grave, ou não merecesse a menor punição.

O contraste maior não é entre Ivaldo e Luíza, unidos pelo destino de uma bolsa com joias, separados por um mar de desigualdades – e sim, entre o auxiliar de serviços gerais que revela conduta baseada em princípios, e o político graúdo envolvido em denúncias de corrupção. Podemos destacar ainda outro contraste, exaltado pela simplicidade de Ivaldo: enquanto os honestos não pedem recompensa, os desonestos creem que serão sempre impunes. Talvez esteja na hora de inverter a moral da história, recompensando a virtude, a força da simplicidade, e punindo a fraqueza daqueles que põem as vistas e as mãos, descaradamente, nas bolsas e nos bolsos da população.

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