domingo, 22 de agosto de 2010

Quando o trabalho faz mal à alma

Quando o trabalho faz mal à alma

Publicado em 22.08.2010

Jornal do Commercio - Recife


Crescem os casos de assédio moral nas empresas. Afastamento prejudica o empregado, seus colegas, patrões e contribuintes. Saiba como denunciar

Raissa Ebrahim
raissa@jc.com.br

Marcos (nome fictício) trabalhou dois anos e meio em uma loja de esportes de um shopping do Recife. Era considerado um excelente funcionário, chegou a receber o título de melhor vendedor do Nordeste e segundo melhor treinador de vendas da rede no Brasil. Mas em seu último ano na empresa, começou a receber advertências e obrigações esquisitas do novo gerente. O chefe o ordenava a realizar serviços que não eram de sua obrigação, reclamava constantemente de seus trejeitos e chegou a deixá-lo algumas vezes sem intervalo para comer. Ao sair de férias, o gerente deixou pronta a carta de demissão do subordinado. Marcos foi vítima de um fenômeno crescente entre a população economicamente ativa do Brasil, o assédio moral, que vem aumentando os casos de depressão e de ordem emocional no ambiente de trabalho. O Ministério da Previdência não dispõe do número exato das despesas causadas por este tipo de problemas, mas é possível estimar. Somente em 2009, se levarmos em conta, num cálculo modesto, apenas um mês de afastamento de cada funcionário, o governo federal gastou mais de R$ 11 milhões em auxílio-doença.Se tomarmos um prazo de um ano para cada licença, o valor salta para R$ 132 milhões.

Hoje Marcos está deprimido e fazendo acompanhamento psicológico. Está desempregado porque não consegue enfrentar uma nova seleção de trabalho e diz que no início até pensou em suicídio. Ele acredita que o gerente não tolerava o fato de ele ser homossexual. Para o sistema previdenciário brasileiro, os transtornos mentais e comportamentais decorrentes do ambiente laboral, como depressão, síndrome do pânico e transtornos de estresse e ansiedade, são enquadrados como acidentes de trabalho. Em 2007, ano em que foi instaurada uma nova tecnologia de análise para combater a subnotificação dos acidentes, o Ministério da Previdência Social registrou quase 7,7 mil casos de afastamento por esse tipo de transtorno. Em 2008, esse número saltou para pouco mais de 12,8 mil. Em 2009, último ano de que se tem registro, foram quase 13,5 mil benefícios concedidos. Nesses três anos, houve, portanto, um aumento aproximado de 75% dos casos.

Em 2006, quando ainda não haviam sido instituídos os novos procedimentos para detectar essas doenças, o número de notificações foi de apenas 612 casos. Para se ter ideia da gravidade do problema, de 2007 para 2009, houve um acréscimo de 71% só nas pessoas que sofrem de transtornos de humor por causa do emprego.

Do ponto de vista econômico, o prejuízo é grande não só para o doente e o empresário da iniciativa privada, mas também para o governo e o contribuinte, que tem que arcar com os custos previdenciários e de tratamento do País. O prejuízo em decorrência da redução da produtividade, diminuição da qualidade dos produtos e serviços e deterioração da imagem da empresa são preocupantes. Isso sem falar das faltas e da maior rotatividade de mão de obra. Pessoas com depressão, por exemplo, têm quatro vezes mais chances de faltar ao trabalho.

ALÉM DO INSS

Os gastos não se limitam à Previdência. Só para se ter uma ideia, de 2002 a 2009, os investimentos do Ministério da Saúde em políticas de saúde mental aumentaram 142%, saltando de R$ 619,2 milhões para R$ 1,5 bilhão ao ano. Mas para o professor do Departamento de Ciências Contábeis e Atuariais da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e mestre em Direito Previdenciário Severino Pessoa dos Santos, “os problemas mentais e comportamentais ainda não estão devidamente mensurados nos estudos que servem de base para definir despesas, contribuições e o futuro da previdência e da assistência médica no Brasil” Diz ele: “Essas novas patologias ainda não estão equacionadas como deveriam no sistema previdenciário do País”.

Para o pesquisador da UFPE e diretor da Sociedade Pernambucana de Psiquiatria, Amaury Cantilino, a sociedade hoje exige muito das pessoas, e o trabalho pode ser um ambiente muito fértil para o estresse e os transtornos de ansiedade. “Os problemas com o chefe, a competitividade interna e as metas muito apertadas costumam gerar desmotivação. Infelizmente quem termina se dando bem é quem consegue se adaptar a essa roda-viva”, lamenta ele.

TECNOLOGIA

E o cenário atual do mercado de trabalho não é muito animador. Os avanços tecnológicos, ao contrário do que se pensava anos atrás, não têm diminuído a carga de serviço e aumentado o tempo livre para o lazer. O trabalho passou a nos perseguir no e-mail, no celular e no smartphone.

As categorias profissionais mais atingidas costumam ser atendentes de telemarketing, funcionários do comércio, professores e bancários. No setor de teleatendimento, há relatos de intenso monitoramente até mesmo para ir ao banheiro.

Os sintomas iniciais mais comuns de quem sofre com o emprego e pode chegar a desenvolver algum transtorno mental e comportamental são irritabilidade, insônia, angústia, ansiedade, dificuldade de concentração e hipersensibilidade emocional. O Ministério da Saúde não sabe mensurar ao certo quantas pessoas sofrem do problema em decorrência das más condições de trabalho, mas, de acordo com a Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios (Pnad), do IBGE, feita em 2008, 4,1% dos brasileiros sofrem de depressão.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2000 a depressão era a quarta doença mais comum do mundo. A previsão é que nos próximos dez anos ela caia para segunda colocada, perdendo apenas para os problemas cardíacos, e, em 2030, seja a doença mais comum do mundo, inclusive demandando altos custos econômicos e sociais principalmente para os países em desenvolvimento. As más condições de trabalho, certamente, contribuirão para este quadro.

Para a Coordenação de Saúde Mental do Ministério da Saúde, cerca de 10% a 25% das pessoas, em todas as faixas etárias, podem apresentar um episódio depressivo em algum momento da vida. Mas Cantilino adverte que aí também reside o problema: muita gente que não desenvolveria a doença termina sendo vítima.

Roberto (nome fictício), por exemplo, desenvolveu uma síndrome do pânico por causa das pressões do chefe da nova empresa para a qual foi contratado. Ele já havia trabalhado em duas outras firmas do setor varejista, onde presenciou cenas marcantes de desrespeito com outros funcionários. Os gerentes costumavam chamar os empregados por apelidos maldosos e gritar na hora de dar ordens e repassar funções.

Nessa nova companhia, Roberto, além de conviver com a cobrança interna pois era o emprego que sempre almejou, tinha que conviver com a pressão da competição e das metas apertadas. “Além de dar 150% de mim no trabalho, eu terminei dando também a minha saúde física e mental”, comenta ele.

A angústia e ansiedade começaram a aumentar até que Roberto passou a sentir falta de ar, taquicardia e medo constante de estar em determinados locais. Quando ele pensava no trabalho, os sintomas ficavam ainda mais perceptíveis. “Meu corpo se contraía todo e parecia que eu estava prestes a lutar com um leão, o problema é que eu não sabia quem era esse leão nem o que estava acontecendo”, conta ele.

Por sorte, Roberto procurou logo ajuda e hoje está fazendo sessões de terapia e tomando remédios. Ele passou a adotar também uma nova filosofia: respeitar os seus próprios limites e não levar os problemas do trabalho para casa. Está se sentindo bem melhor.

PEDINDO AJUDA

Uma das alternativas para quem sofreu assédio moral ou discriminação no trabalho é procurar o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e fazer a denúncia. Lá o empregado pode registrar a queixa e participar de uma conciliação com a empresa acusada, não sendo necessário levar advogados ou testemunhas. Caso tenha alguma dúvida sobre o assunto ou ainda esteja inseguro em prestar a queixa, pode solicitar uma consulta, na qual receberá orientação sobre seus direitos.

Fernando Sampaio é auditor fiscal do trabalho e coordenador da Comissão Regional de Igualdade, Oportunidade e Combate à Discriminação do MTE-PE e já presenciou inúmeros casos de depressão e outras perturbações psicológicas. “Muita gente demora a perceber o assédio moral e só detecta quando o quadro de problemas físicos e mentais já se instalou. Já vi muitos casos de ataques nervosos e até pré-enfartes nas sessões de conciliação. Alguns ficam com sequelas pelo resto da vida porque demoram a procurar ajuda”, testemunha Sampaio. Segundo o auditor, as cobranças algumas vezes fazem com que a pessoa passe a desconfiar da própria capacidade, quando na verdade o empregador é quem cria todo um contexto na tentativa de que o funcionário se demita. “Muitas vezes a empresa vem para a conciliação alegando que o funcionário falta muito e ela, a empresa, é que se prejudica. Mas o empregador às vezes não pensa que a causa das faltas pode ser as más condições do ambiente de trabalho”, comenta.

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