domingo, 28 de fevereiro de 2010

Misericórdia - Paulo Roberto Barros e Silva

Misericórdia
Publicado em 28.02.2010 - Jornal do Commercio


Paulo Roberto Barros e Silva
Os antigos usavam a palavra misericórdia para expressar o sentimento do medo, da estupefação e até mesmo quando tomados por surpresas desagradáveis como o anúncio da morte de um ente querido. Assim era na casa do meu avô, que não era santo, mas verdadeiramente misericordioso.Antigamente a lembrança da infância na casa de Seu Samico, em Parnamirim, perto dos "doidinhos da Tamarineira", está guardada na memória. No tempo recente, dos anos 90, a lembrança do Conselho Estadual de Cultura propondo e o governador Joaquim Francisco tombando de forma plena o Hospital Psiquiátrico Ulysses Pernambucano ainda está viva na memória que se mantém contida no tempo da insensatez.

Há que se fazer registro de mais um atentado ao que resta de uma cidade que já foi lugar bom de viver. Aliás, na última década, a degradação ambiental prospera e tem origem exemplar no nicho antiecológico do Poder Municipal. É provável que o anúncio do projeto de um shopping center na Tamarineira já tenha obtido sinal verde para aniquilar o verde que lá teima em permanecer de pé - nas mangueiras, nas castanholas, nos jambeiros, nas tantas fruteiras que mais parece uma mata. E, como nos quintais de Parnamirim, querem matar a mata da Tamarineira.

Quanto ao anúncio do projeto, com direito a preces de exaltação, resta um outro registro que diz respeito a duas questões: a primeira, no plano legal (embora isto não importe aos poderosos de plantão) - como fica o tombamento perante o governador e qual a posição do Conselho Estadual de Cultura? Como a prefeitura vai justificar à luz do Plano Diretor, com o amparo da Secretaria de Meio Ambiente, um parecer favorável de encaminhamento do projeto ao Conselho de Desenvolvimento Urbano? A segunda questão refere-se ao território e à função social da área - eixo condutor do moderno e pouco eficaz instrumento de planejamento urbano contido no Estatuto da Cidade e copiado no Plano Diretor do Recife. Isto porque, este espaço de 90 mil m² exerce a inteireza da função social se caminhar na direção do seu uso e fruição pela população, como se dá nos Parques da Jaqueira e Treze de Maio. Sabe-se, de há muito, que o terreno do Hospital da Tamarineira é a única reserva disponível para ofertar um equipamento de lazer, de entretenimento, de convivência e de amenização ambiental em uma região adensada, espremida entre o asfalto das vias e o concreto dos edifícios. Sabe-se que o sistema viário da Zona Norte não aguenta sequer uma barraca de coco em suas esquinas, quanto mais um centro de compras da dimensão proposta.

A absurda e infeliz tentativa de ocupar o terreno da Tamarineira certamente virá acompanhada da mistificação dos números. De falaciosas benesses contidas no programa e seus componentes, bem como de competente campanha de comunicação a enaltecer o espírito e a responsabilidade sócio-ambiental dos empreendedores. E haja espiritualidade e boas intenções neste shopping. Na verdade, trata-se de empreendimento privado que retira parte substantiva do que deveria ser um parque público - tudo o mais é desvio tático para fugir da discussão essencial. É mais um crime ambiental acometido contra o Recife e sua gente.

Entre a surpresa da ousadia e a indignação pela aparente viabilidade da proposta, resta lembrar meu avô e repetir o chavão. Ao governador e ao prefeito na hora da decisão, misericórdia. Aos sacerdotes e conselheiros, misericórdia. Aos que circulam nas Avenidas Norte e Rosa e Silva, misericórdia. Aos sem parque do Recife, misericórdia. Aos que calam e se aquietam, sejam coniventes ou beneficiários, misericórdia. Ao povo silente e apático da minha cidade, misericórdia.

» Paulo Roberto Barros e Silva é arquiteto

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