domingo, 11 de abril de 2010

O pecado de Ícaro

O pecado de Ícaro
Publicado em 18.03.2010 - Jornal do Commercio

Valdeblan Siqueira
Outro dia, a caminho do trabalho, avistei ao longe um menino empinando pipa. Trajava bermuda bege e camiseta vermelha. Daquela distância observei que tinha os cabelos tingidos de branco. Em período carnavalesco é comum ver, nos semáforos, garotos com os cabelos pintados, ora de vermelho, ora de outra cor. Naquele caso, a cor era branca. Imediatamente, lancei mão de um paradigma fácil e precipitei um juízo de valor. Usando uma metralhadora moralista, detonei, em pensamento: menino vadio. Deveria estar na escola. Onde estarão seus pais que não cuidam de sua educação! Ao me aproximar ainda mais, verifiquei que seus cabelos eram ralos. Ao final, uma surpresa: o menino contava com pelo menos 70 anos de uma juventude eternizada. Sob seu comando havia uma pipa que, na outra extremidade, empinava seu espírito, devolvendo-lhe a alegria de viver. O que me fez lembrar Domenico De Masi: o ócio não é só preguiça e vadiagem. Pode ser criativo.

Já pelo retrovisor observei que o velho menino continuava com o olhar voltado para o firmamento. Mas não cometera o pecado de Ícaro que, segundo a mitologia grega, e ignorando as recomendações de seu pai, voara rente ao sol, precipitando-se sobre o mar. Ao contrário de Ícaro, seus pés descalços estavam cravados no chão de terra batida. Quem sabe buscava a harmonia perdida entre o céu e a terra. A direção do seu olhar me induziu a pensar que talvez estivesse reclamando das nuvens que têm trazido chuvas inclementes para os irmãos do Sul e do Sudeste. Pedindo, talvez, "pra chover, mas chover de mansinho". Os pés no chão indicavam que não atribuía a responsabilidade a inocentes nuvens que costumam desenhar coisas bonitas e fazer sonhar os poetas. Talvez estivesse recordando a sabedoria popular, quando diz que, "quem semeia vento, colhe tempestade". Os recentes registros de desajustes no clima e de catástrofes naturais advertem que estamos colhendo frutos de um desenvolvimento descomprometido com a preservação do meio ambiente.

Empinar é verbo transitivo direto. Para a criança, o complemento necessário é e será sempre uma pipa. Para quem vê, interessa a paisagem integrada pela ação e pelo agente. Para quem empina a pipa, pouco importa a forma nominal ou verbal, mas a magia do momento, contagiando quem a tudo assiste. Indiferente à gramática, o velho, o menino, o velho menino, continuava no meio de uma rua sem calçamento, bailando e encantando, porque encantado. Seus dedos puxavam ritmicamente uma linha que provocava a evolução da pipa. Poder mágico de usar equilibradamente a natureza e manter no ar o objeto de sua criação. Progresso que não esquece a humanização. Seu semblante exprimia uma existência serena e feliz. Nele a prova de que a riqueza é meio e não um fim. O trabalho não pode derreter as asas do espírito e da criatividade. Sintonia fina entre natureza e cultura que não nega o valor dos avanços científicos e tecnológicos, mas supõe o uso consciente dessas ferramentas. O pecado não está em querer voar, mas em não fazê-lo consciente e responsavelmente. Sonhar sonhos impossíveis. E pisar no chão para realizá-los. Viver a vida. Intensamente. No velho menino, uma experiência estética, lúdica, rítmica e aerodinâmica. Mas também cinética, holística e espiritual. Quiçá tenha sido assim, brincando com pipa, o despertar para a ciência do garoto Santos Dumont. Coisa de menino, querer voar. Próprio do adulto, controlar o voo. Determinação e responsabilidade. Como estimular esse diálogo sem anular papéis? Empreendedorismo, inovação, inteireza de caráter e alegria de viver. A excelência não dispensa a virtude do trabalho e da disciplina. Menos ainda as virtudes do amar e do amor. Assim, juntinhos, verbo e sentimento.

» Valdeblan Siqueira é auditor fiscal de tributos da Secretaria da Fazenda do Estado de Pernambuco e diretor da Escola de Direito da Faculdade dos Guararapes

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